O Que Realmente Importa - De filho pra pai.
- memoriascontos
- 23 de dez. de 2024
- 5 min de leitura
Por: André Shimizu.
Este é um conto original Memórias em Contos com os indivíduos e locais trocados a fim de manter a privacidade dos envolvidos. Neste conto, eu (André Shimizu) entrevistei Gustavo Kaito (nome fictício) e escrevi seu relato em forma de conto para presentear seu pai Nelson (fictício). Boa leitura!
Educar para voar
Amar para, por perto, pousar
Um dos dilemas na criação dos filhos é a tensão entre o controlar a vida deles ou se afastar demais de suas decisões. Se por um lado algumas crianças sofrem com as expectativas excessivas de seus pais, que os observam sempre de pertos e dão para eles tudo o que eles querem, outras sofrem pela ausência deles como uma retaguarda emocional, especialmente quando precisam de auxílio para tomarem decisões importantes. Mas essa talvez seja uma história que não vai para nenhum destes dos dois caminhos.
— Cara, eu ficava muito frustrado porque eu perdia todas! — Disse-me Gustavo. Ele me contava sobre sua infância, quando brincava com seu pai no ofurô de casa. A porta de vidro embaçada pelo vapor permitia que jogassem jogo da velha juntos durante o banho e, aparentemente, seu pai não pegava leve contra seu adversário de cinco ou seis anos de idade. Além do jogo, a hora do banho também se transformava em uma pequena aula particular do pesquisador para com seu guri; ali naquela lousa improvisada de vidro embaçado pelo vapor, o pai dava contas de matemática para seu menino resolver, despertando nele o raciocínio lógico que o acompanha até os dias de hoje.
Nelson estava ali, presente. E se seu filho quisesse ganhar dele, podia; bastava se esforçar mais. Mas se não quisesse mais jogar, não teria problemas também, não carregaria ressentimentos ou preocupações. O menino cresceu e já não cabia mais no ofurô de casa com seu pai, mas algo daqueles tempos de criança permaneceu: um incentivo para que ele melhorasse e que, se precisasse do pai, ele estaria lá.
As asas do garoto foram se formando e ele começou a sentir que podia voar: pegou aviões quando menor de idade e sem acompanhamento; encontrava com os amigos um pouco mais longe de casa; decidia de última hora mudar de planos e dormir na casa de alguém; dava carona para os amigos; trazia amigos para dormir em casa. Estudou o que gostava e estudou um pouco menos, só o suficiente para passar, o que não gostava. E estava tudo bem. Foi educado para aprender a definir o que importa e não se estressar tanto com o que não era tão importante. E era (e ainda é) muito grato por essa educação que recebeu, pois ela permite que ele trilhe seu próprio caminho.
Sente até um pouco de pena de seus amigos que não desfrutam desse mesmo tipo de autonomia. No fim de uma festa, um de seus amigos morava longe. Como estava tarde, já não havia mais transporte público; como estava chovendo, o Uber estava caro. Gustavo convidou seu amigo para dormir em sua casa, pois assim ele não teria que gastar tanto com o Uber, poderia descansar e ir para casa cedo no dia seguinte. O amigo recusou, pois, sua mãe não gostava que ele dormisse fora. Ou seja, ele ia passar menos tempo com seu amigo, gastar mais dinheiro e tudo porque os pais não gostam disso. “Acho estranho pô, o cara é adulto! Mó trabalho desnecessário e era só ele dormir em casa” - Explica Kaito, indignado com a situação.
- Mas não é que meu pai não liga - Gustavo continua a me explicar - É só que ele não se preocupa tanto assim e me deixa fazer o que eu quero, o que eu gosto. Se por exemplo, eu fui meio mal em alguma matéria, mas depois recuperar, tá bom, sem estresse. E eu tenho que me virar; se eu quero uma coisa de verdade, não posso ficar dependendo deles para correr atrás, então vou lá e faço.
- Entendi. Então sua relação com ele é de bastante autonomia, você faz suas coisas e cada um cuida da sua própria rotina. Mas e se você pedir, ele te ajuda? - Eu perguntei.
- Ah, ajuda. Eu lembro quando eu tinha lá uns 10 anos e tava com muita dificuldade com conjugação de verbo. Aí ele me ensinou, pegou no meu pé e eu fiquei super bom nisso, acertava tudo. Mas não é muito frequente eu pedir ajuda pra estudar, mas essa daí me marcou bastante. Sei que se eu precisar de alguma coisa, meus pais são as primeiras pessoas que eu vou pedir ajuda.
E talvez essa seja a distância segura para se acompanhar o crescimento do filho. Estar presente e, mais que isso, ele saber que há alguém em quem seus filhos podem confiar. Mas também deixar o guri criar as próprias asas e voar por ele mesmo, afinal, não é pra depender dos pais que se tem filhos.
Mas às vezes é bom ter a confirmação de que se está lá. A cultura nipo-brasileira fala muito com gestos cotidianos e pouco com palavras e, às vezes, essas palavras fazem falta para termos certeza do afeto e da preocupação de alguém. O óbvio às vezes precisa ser dito e demonstrado. E essas demonstrações às vezes vêm de forma sutil, nas situações que menos esperamos…
Gustavo estava dormindo no carro enquanto seu pai dirigia. Acordou subitamente com uma imagem estranha da pista. O carro parecia estar girando. Seu centro de gravidade estava esquisito, empurrando-o para a porta. Um barulhão grande de impacto chegou aos seus ouvidos e o airbag abriu, reduzindo o impacto do que seria fatal. Ouviu o barulho estridente da carcaça do carro raspando no asfalto da estrada, som que trazia ainda mais desespero e apreensão. E, finalmente, se deu conta: o carro capotou e estava virado na pista. Naquela situação inusitada, preso de cabeça pra baixo pelo cinto de segurança, nada parecia fazer sentido. Era uma questão de tempo até o desespero bater. Mas a pergunta de seu pai o trouxe de volta ao senso de realidade:
— Está tudo bem?
Só Deus sabe o que passou na cabeça de Nelson antes de seu filho responder. Mas Kaito estava bem. Logo, para seu pai, estava tudo bem. A perda foi só material. Com o carro naquela situação e pessoas aleatórias ao redor gritando em desespero para que eles saíssem de lá, a notícia de que seu filho estava bem significava que o corpo de Nelson não precisava liberar a dose absurda de adrenalina que estava prevendo. Dane-se o carro, a multa ou qualquer outra consequência; nenhuma perda material iria tirar sua paz. Nelson é alguém com as prioridades bem estabelecidas, pragmático, e o que considerava mais importante em toda a situação, ou melhor, a única coisa que considerava importante, estava bem. E essa preocupação, essa priorização, esse amor era demonstrado pela inusitada paz em meio àquela caótica situação.
Esse é o retrato da forma como seu pragmatismo lida com seus próprios erros, prioridades e amores: “put* que pariu, quase machuquei meu filho ou pior. Quero que ele viva a vida dele, mas, quando ele depender de mim, não quero falhar. Mas ele está bem, então tá bom. Não vou errar mais. Vida segue”.